Domínio de Sangue II

Dezmond gostava de riscos, então colocava tudo em jogo. As fichas pouco pesavam em sua mão, pois seu dinheiro não era muito. Era uma sensação estranha pensar que essa quantia poderia ser perdida em menos de uma noite com simples jogos e, levando em conta tudo isso, ficar sem um centavo poderia ser um tremendo incômodo. Porém o Sem Clã estava confiante naquela noite e a mesa de poker parecia lhe atrair. Logo seus requisitos são preenchidos, uma mesa com três jogadores prontos para começar uma partida no estilo texas holdem. Uma mulher cujas rugas já marcavam-lhe a pele e cujo corpo já não comportava perfeitamente o vestido que usava; um homem jovem, talvez com pouco mais de vinte anos, com um estilo descolado e os clássicos óculos escuros; e, por fim, um senhor de bigode grisalho, chapéu e um terno cinza no estilo country. Dezmond sentava-se e ocupava o quarto lugar.

A estratégia definida era simples. Consistia em criar um perfil falso nas primeiras rodadas e usá-lo ao seu favor no momento decisivo do jogo. Para um estudante de psicologia, não era difícil planejar e agir em volta da mente dos outros. Os padrões surgiam enquanto ele, basicamente, mostrava-se ser alguém que não era, apesar de que não era tão simples analisar os outros jogadores e manter o pequeno teatro durante o jogo. Conforme a partida seguia, Dezmond acabara perdendo algumas fichas, pois seus ganhos dependiam sempre de sua sorte. Porém o saldo negativo ainda estava nos conformes do plano. O jovem de óculos escuros gostava de blefar e se tornou o Big Stack as custas do Caitiff, parecendo ser o mais centrado e mais esperto, no entanto descuidava-se em alguns momentos. Com um pouco mais de atenção, seria possível desvendar quando a aposta era genuína ou não. O senhor de bigode era cauteloso, mas não tão bom em ler os outros e calcular as chances, perdendo algumas apostas importantes por se sentir confiante demais com sua mão. A mulher de idade não era tão iniciante como parecia a princípio, porém distraía-se facilmente com comentários e jogos verbais. Usar a lábia com ela poderia ser efetivo em diversas situações.

Depois de alguns minutos de jogo, Dezmond era o último em termos de fichas, seguido pelo senhor à sua direita. A situação, porém, ainda não era tão ruim assim, uma vez que ele ainda possuía grana o suficiente para virar o jogo. Pelas suas observações, a ideia de tentar ver as cartas de seus adversários aguçando sua visão não seria possível dadas as circunstâncias, mas os outros meios sobrenaturais ainda estavam em aberto. Por outro lado, os outros jogadores pareciam ter comprado o tipo de apostador que ele mesmo criou para si, então agora poderia ser o momento para usar isso ao seu favor. Claro que havia a chance desse plano ser desvendando antes da recuperação, o que tornaria as coisas mais difíceis. Se isso realmente ocorresse, a partida seria decidida em um confronto de leitura, tendo a vantagem quem soubesse usar melhor a fraqueza de seu adversário.

A voz não natural de Yarn ecoa pelos túneis dos esgotos enquanto ele responde às indagações de Múmia.

- Ninguém sabe o que é a doença. E se alguém sabe, esconde muito bem. O que a maioria acha é que é algo semelhante à Raiva, porque quando descobriram isso, os ratos tinham matado uns aos outros. Uma ninhada pequena, mas bastou para começar o alvoroço. Depois que as coisas se acalmaram, só os Quartas ainda abriam a boca pra falar nisso. Para eles, Sandra virou a 'cachorra de sangue podre' e a relação dos dois grupos ficou ainda pior. No final das contas, ninguém parece ter prova de nada. Hehehehe.

- O pouco que sei da Sandra é o que já disse a você. Ela trata os membros do nosso clã como iguais e, em troca, ele fazem o mesmo. A maioria pelo menos. Pelo que vi, ela é fiel ao bando, sempre cautelosa e alerta. E agradável de se ver, hehehehehe... Hmm, o Dricks, por outro lado, é um cara que me dá calafrios. Dizem que ele é tão velho e poderoso quanto o Barão Gutenheimer, só que menos amigável, pra não usar outra palavra. Ninguém ousa pisar no território dele, muito menos sabe o que tem lá. Foi uma surpresa quando o Zorek conseguiu abrigo com ele. Meu palpite é que uma dívida muito grande entre os dois foi cobrada... Errr, o velho não gosta de lidar com as políticas lá de cima, mas eu sei que o Barão já se encontrou com ele uma ou duas vezes no meu tempo de morto.

Yarn começa a fazer várias curvas, seguindo as orientações do Secretário. Os desvio do caminho tomado até então consome mais tempo e, pouco a pouco, os túneis começam a ficar mais estreitos. Baratas e outros insetos correm pelas paredes em resposta à aproximação dos Membros. A falta de visibilidade ainda prevalece.

- Olha, eu não sou nenhuma cria. Fui criado por um Rato de Denver, mas já estou aqui há bastante tempo e trabalho simplesmente levando mensagens ou pessoas. Pra mim, aliança atrai problema, então eu prefiro me virar sozinho e sem chamar atenção. Dito isso, eu não entro em confusão. Só abri a boca lá atrás porque você tava aqui e, pra falar a verdade, acho que já me arrependi. Hehehehehe. Então, eu lhe levo até a borda do território do Dricks e de lá você faz seu caminho, ok?! Você entende né? Não quero arriscar meu pescoço. Se você tiver sorte, pode encontrar o Zorek primeiro, perguntar o que você quer saber e voltar direto pra mim.

Paradise sabia que a dica de Yarn ia contrária a todos os costumes e as cortesias dos Membros, mesmo entre os Ratos de Esgoto. No entanto a ansiedade que o Nosferatu demonstrava fazia-o ponderar suas palavras. Claro que suas ações também dependiam dos objetivos buscados ali. Dricks era realmente uma peça importante em seu plano ou o Ancião era só mais uma pedra no caminho? De toda forma, o Samedi sabia que um Membro tão poderoso não devia ser tratado levianamente.

Claire retribui o olhar de seu irmão. As palavras dele são como uma chama que retomam as dúvidas em suas feições. Dúvida sobre a doença e como seria sua vida dali para frente. Além disso, era como se ela revivesse o que a levou a estar nesse estado. Relembrando momentos bons, de saúde, e, logo após, sendo massacrada pelos momentos ruins. A boca delicada abre, mas por um instante não profere nada, hesitante. Um suspiro lhe dá a força necessária.

- Quando você fez a última viagem, eu fiquei sozinha. Não tinha ninguém para cuidar do dojo e a casa ficava maior a cada dia. Eu estava com uma sensação ruim lá, não dormia direito nem conseguia colocar a cabeça no lugar. Muitas lembranças, eu acho. Um tempo depois, eu recebi uma ligação de Vegas. Um conhecido de uma amiga minha que estava precisando de alguém para trabalhar de cuidadora. O pagamento era incrivelmente bom e, além disso, eu poderia me ocupar com outras coisas. Eu sei que a gente ficou muito tempo lá, mas eu precisava me afastar, pelo menos por um tempo. Tudo era tão triste e solitário. Mas depois que comecei a trabalhar aqui, me senti bem melhor. Alegre, disposta, só que do nada, essa doença apareceu. Começou aos poucos, dores ao fim do dia, pernas travadas pela manhã, mas quando fui no médico, não havia diagnóstico. As coisas pioraram, mas o dinheiro que você continuou me mandando e a ajuda do meu chefe aliviaram a situação. Que irônico não? A cuidadora acabou precisando de um no final.

Seu sorriso é triste, digno de alguém que tenta rir do próprio sofrimento sem ter sucesso. Era uma cena difícil de se ver, pelo menos para Rian, que nutria tamanho sentimento por aquela pessoa. Ela não parecia ter ideia do que mais a envolvia, porém isso não tirava a possibilidade de estar tudo conectado. Era um quebra-cabeça difícil de resolver, principalmente quando o Cainita possuía tão poucas peças.

- Eu sei que não estou tão bem, mas não sou cega. O que foi aquela conversa entre você e Paul? Nem tente esconder nada.

Paradise era eloquente e articulado. Sabia usar as palavras cuidadosamente para causar efeitos diversos em seus interlocutores. Naqueles túneis não era diferente. Talvez fosse a forma mais segura de apaziguar a situação entre os grupos e terminar seu trabalho, ou talvez manipular os outros o agradasse mais do que o esperado. O membro dos Quartas tinha sido seu primeiro alvo, no entanto seu guia estava para sentir o peso de suas palavras. O Samedi começa com um discurso agradável de gratidão. Sincero ou não, Yarn havia sido de grande ajuda até então e não havia como negar. No entanto a cortesia logo se torna ameaça. Sutil, mas ainda assim uma ameaça. O Nosferatu sente a presença forte emanando da mão em seu ombro e pescoço. Sua expressão aérea se desmancha e sua cabeça abaixa em sinal de obediência. A fala risonha cessa, o rosto horrendo franze e as mãos que costumeiramente mexiam e coçavam o moicano loiro ficam pensas e moles abaixo da cintura. Paradise conseguiu o que queria com poucas palavras, mas algo lhe dizia que ainda teria que conversar muito até resolver todo o problema.

A partir daí, Yarn lidera o caminho soturno. Ele parece mais rápido nas decisões. Não para mais pra lembra-se do caminho nas interseções, nem para explicar os sinais escondidos. Quando um local mais recluso dos esgotos é avistado, o Samedi faz a parada. Uma plataforma de pedra e cimento elevada acima do nível do escoamento é o ambiente escolhido. Enquanto ele prepara o ritual, o guia observa de longe, sem querer se aproximar um passo sequer. Insetos se afastam com a luz das chamas e o som do cântico. O cheiro do incenso de ervas sobe, misturando-se ao fedor de fezes e urina. Não é algo agradável, mas isso era irrelevante. Todo os passos, claro, são alegóricos, bastando, para Paradise, apenas concentrar-se na sua convocação. Sua visão, mesmo incrementada, turva. É como se a fumaça das velas tivesse tomado a maior parte do seu campo de visão. Um chiado preenche seu ouvido e, aos poucos, começa a se tornar distinguível.

- Ag meak zurhmet sak'taymt. Khital rpagkle. Àquele que me convoca, tens pois minha atenção. Àquele de carne morta, ouço sua súplica. Azjiz gyeui zerath. Declare breve sua barganha, ser de alma desprezível.

Paradise tinha certeza que só ele estaria ciente da voz do além. Apesar de realizar esse tipo de rito diversas vezes, ainda havia algo que incomodava ao mexer com almas do outro mundo. As palavras obscuras do ser davam um embrulho no estômago, embora ele soubesse que já não havia mais estômago para embrulhar.

As explicações de Claire são claras, mas levantam dúvidas. Indícios e suspeitas que permeavam a mente de Rian, de que algo não estava certo e havia muito mais escondido por baixo desses acontecimentos. Porém essas conjecturas faziam o jovem Cainita perceber, aos poucos, sua inexperiência. Percebia que, apesar de estar incluso nesse mundo, seu conhecimento sobre ele era mínimo. Não conseguia nem criar uma teoria que pudesse chegar perto de explicar parte do fato e isso o frustrava. Era uma sensação de impotência avassaladora, diferente da usual mas igualmente irritante.

Diante das suas poucas opções para seguir em busca de resposta, surgia o nome de Erwin. O Gangrel Membro da Primigênie de Edimburgo e integrante dos Filhos de Badb. O Ancião havia sido como uma espécie de Mentor para Rian durante seu período na Europa, além de ter sido responsável pela iniciação do Forasteiro na facção. O relacionamento dos dois ainda era incerto, uma vez que Rian havia abandonado o Velho Mundo para voltar para sua família, mas se alguém acessível podia ter conhecimento o suficiente para fornecer ajuda, esse alguém era Erwin. Todas essas ponderações duram alguns instantes, até Claire demandar explicações. Não havia como evitá-la, era hora de abrir o jogo.

Há um ditado que diz que o ser humano gosta de ser enganado, mas odeia saber que está sendo enganado. A primeira parte do dizer era questionável, mas a segunda estava sendo comprovada naquele exato momento. Como um vidro frágil se despedaça ao mero toque, Claire se sentia quebrada ao ouvir a verdade. Dada a sua condição, era um choque e tanto. Ela tenta se controlar, mas as últimas palavras de seu irmão são como um golpe final. Lágrimas escorrem no seu rosto que se contorce numa horrenda expressão de tristeza e raiva somadas. A mistura de emoções é nítida e se sobressai, mesmo numa pessoa tão gentil. Mesmo Rian tinha noção de que era muita coisa para processar, e isso fica claro no estado final da sua irmã: atônita.

A voz inumana preenchia os ouvidos do vampiro como a fumaça que tomava parte de sua visão. Seus sentidos eram tomados enquanto o diálogo com o espectro continuava. Apesar de comum a ele, a mediunidade não era uma habilidade banal, e sua utilização era sempre acompanhada de sensações que não podiam ser explicadas com palavras. Claro que o tempo e a experiência eram fatores chave para lidar com isso, no entanto até o próprio diálogo com os espíritos devia ser feito com cuidado. Por isso, Paradise escolhe suas palavras cuidadosamente, adornando-as com seu gracejo sobrenatural. Não havia como ter certeza se esses artifícios funcionariam num ser de outro mundo, porém também não havia porque não tentar. Um momento de silêncio se dá entre a proposta e a resposta gutural.

- Amekh, o invocado, tem pois uma demanda. Zraf kirhkha neod. E dois avisos. Joia antiga reside aqui, ankhent, um anel. Prata pura, reluz escarlate. Encontre. Destrua. - o som da voz deforma-se em gemidos e ganidos indistinguíveis, retornando após instantes a palavras decifráveis - Seu passado e futuro encontram-se nesse lugar. Atento deve estar aos sinais.

Por um breve momento, os irmãos ficam em silêncio. Ambos pensam nos seus respectivos passado, erros, falhas, arrependimentos e culpa. Cada um carrega marcas, algumas delas compartilhadas, outras que o outro nunca irá entender. Os soluços de Claire intercalam as lembranças, como um metrônomo que marca o ritmo de uma canção. Do lado de fora, a Vegas noturna permanece barulhenta. Veículos, músicas, vozes dos turistas que se maravilham com a cidade do pecado sem saber dos mistérios que a envolvem. Rian, de certa forma, inconformado com o estado de sua irmã, tenta remediar ou quem sabe dar conforto, usando palavras que já há algum tempo não saíam da sua boca. Porém, talvez por essa falta de costume, seu discurso sai fraco. Soam como palavras de alguém que fala por não aguentar o peso do silêncio. Talvez fossem.

Claire não reage, ainda envolta em seus próprios pensamentos. Era difícil imaginar o que passava por sua cabeça. Talvez por isso o Gangrel resolve indagá-la sobre algo diferente.

- Deus?! - ela se questiona como se voltasse a si aos poucos, enxugando as lágrimas do rosto - Acho que é a primeira vez que vejo você falando essa palavra sem ser pra reclamar de alguma coisa. Sabe, eu nunca fui como os outros da caravana. Sei que você vai dizer que eu era muito nova para lembrar, mas há algumas coisas que minha cabeça gravou. Eu lembro de imagens de santos no baú velho da mamãe, lembro de terços e rosários nos braços e pescoços das outras mulheres, lembro até de um estátua de barro, já sem cor, da virgem Maria que o papai nunca fez questão de vender. Mas sei que, apesar de ora ou outra eles rezarem pra essas relíquias, nenhuma vez sequer eu ouvi o nome de Deus enquanto viajávamos por aí. Parecia que eles estavam confortáveis em acreditar em entidades divinas, mas que o deus supremo era algo além da linha. Hoje eu sei que eles eram livres demais para aceitar um ser todo poderoso governando a vida deles. Pelo menos é assim que eu entendo. Por minha parte, não, eu não acredito em Deus. Mas não porque eu valorizo minha liberdade ou porque acho a vida injusta demais a ponto de renegar um criador. Eu só vejo as coisas como elas são, a bondade ou a maldade é decisão de cada um, e não uma determinação ou dádiva dos céus. Deus é apenas algo que as pessoas usam para tirar o peso das próprias ações.

O sentimentos de Paradise se encontravam divididos após as palavras do espectro. Divididos entre o sucesso de suas habilidades ao terem encontrado um ser disposto capaz de auxiliá-lo em sua busca e a frustração da contrapartida demandada pelo mesmo. Divididos entre o presente desafiador mas promissor que vinha se apresentando e o passado sombrio e amedrontador que ameaçava retornar para pôr suas mãos sobre ele. Divididos entre as possibilidades de verdade e mentira daquelas palavras guturais e nefastas, porém conhecidas do médium. É certo que a moeda sempre tem dois lados, opostos, contrários, no entanto, independente de que lado você prefere, a moeda presenteada sempre contém suas duas faces unidas. A verdade e a mentira andam juntas, assim como o presente não esquece de seu passado.

Paradise usa seu jogo de eloquência. Decidia agradar a seu interlocutor, mas também queria algo antes de completar sua parte da barganha. Se não tudo, então uma parte que o deixasse em vantagem. Um direcionamento ou até uma informação privilegiada. Usando um termo muito comum em Vegas, o Samedi era um jogador. E havia muitas habilidades que precisavam existir em alguém para lidar com seres tão desconhecidos. A resposta vem após alguns segundos.

- Sombra e corpo parecem coisas diferentes, mas olhai do lugar certo e eles são um. - a voz sai cada vez mais lenta, até monótona - Continue seu caminho e verá que são como sombra e corpo. Jvahkl zonhtal urizhqew. Conheces uma face do perigo, primal, selvagem. Instintiva, e esse é o ponto fraco. Ele aumenta, contudo, e eis o segundo aviso. Está perto!

Novamente, as palavras se misturam em sons graves e infernais, e por um momento Paradise acha que há uma risada em meio àquela mistura indistinguível. Ou podia ser só sua percepção alterada pelo estado de transe. Porém, antes de processar as palavras e pensar em dar uma resposta ao espectro, a visão começa a voltar ao normal. A névoa se dissipa, dando lugar às paredes de cimento iluminadas pelos resquícios de chama das velas negras. Olhando de volta para o caminho, não há sinal da presença de Yarn, que há alguns minutos observava desconfiado ao ritual. O som abafado e oco que preenchia os ouvidos dá lugar ao eco de água corrente e, ouvindo mais atentamente, ao chapinhar crescente. Fosse o espírito ardiloso ou não, realmente estava perto.

As palavras de Claire soam estranhas aos ouvidos de Rian. Não era o que ele esperava ouvir. Porém ele se mantinha firme, e usava seu passado como uma forma de convencer sua irmã a reavivar sua fé perdida. Dali para frente as coisas não seriam fáceis e se uma crença ajudasse a eles dois passarem por essa fase, era isso que ele iria buscar. Seu discurso é pontuado por suas experiências na Europa, coisas que poucos mortais, e até imortais, podiam dizer que já vivenciaram. De fato, muito ocorreu no pouco tempo que ele esteve lá e sua própria face era uma prova de que a maior parte foi penosa. Claire escutava tudo atenta, e quando a existência do Anjo Caído é citada ela franze o rosto. Era uma reação normal, desacreditar algo que está muito acima da própria realidade, no entanto conforme Rian continua o relato com seriedade, ela percebe que tudo aquilo acontecera de verdade.

Ao fim do relato, Claire sente sua boca seca, como se ouvisse o irmão há muito tempo, embora apenas minutos tivessem passado. Ela tenta formular alguma pergunta, mas as palavras embaralham-se na sua boca. Pela expressão, Rian percebe que ela sente dor. O sentimento de preocupação aflora, enquanto sua mente vagueia ao relacionar a citação de Mael com a piora da irmã. Mas talvez fosse só um medo infantil.

- Meus remédios. - ela diz por fim, pondo a mão sobre a têmpora - Na mesa.

Paradise parecia aturdido tentando entender os presságios daquele ser não-vivo. Sua interpretação teria que ser precisa se quisesse que aquela conversa fosse útil, no entanto algumas coisas naquela mensagem eram bem claras e outras, como ele já constatava, bem verdadeiras. Ele não precisava de seus sentidos aguçados para perceber o som que reverberava nas paredes de rocha e cimento. Sua mente, porém, era mais astuta e mais cautelosa. O desaparecimento de Yarn não tinha sido por acaso e o Samedi suspeitava que uma presença escondida estava por trás disso tudo. Sua visão tenta trespassar a cobertura sobrenatural e ver o que não podia ser visto, mas não havia nada além do mundano. Nenhum par de olhos se escondia nas sombras e nenhum braço monstruoso esperava-o para agarrá-lo. Tudo estava como antes a não ser pela falta do guia de moicano loiro.

Nos segundos que se passam enquanto Pardise vistoria as redondezas, seu sangue pulsa em seu corpo. Seus músculos se tensionam e ganham poder, para uma fuga talvez. Agora o som parecia mais próximo, como se em segundos o que quer que estivesse produzindo-o fosse aparecer ao seu lado. Seja qual fosse o plano do Samedi, ele tinha que decidir logo. Sua localização lhe permitia duas rotas, as quais levavam por túneis escuros e semelhantes. O caminho que tomavam anteriormente seguia pela direita e fazia uma curva vários metros à frente. O segundo necessitava que ele recuasse alguns metros em direção do chapinhar crescente e tinha vários caminhos secundários no seu percurso. A iluminação escassa não ajudava muito na decisão, apesar do Auspicios corrigir, um pouco, esse problema. Além disso, as estruturas deixam pontos cegos por todo o percurso. Eram bons para servir de cobertura ou um esconderijo rápido, mas péssimos se o que estivesse caçando-o fossem realmente roedores de faro aguçado e percepção animalesca. Infelizmente, nenhum bueiro era visto nas proximidades.

Com preocupação em seus olhos, Rian rapidamente vai até a mesa procurar pelos remédios. Lá ele se depara com vários frascos de vidro e cartelas de medicamentos muito bem organizados. Há uma tabela, escrita à mão em uma folha de ofício, que indica os horários para tomar cada um deles. Ele verifica e pega o vidro adequado, com cápsulas vermelhas. Pelo que o rótulo indica, é algum tipo de analgésico. O odor também não lhe parece suspeito, embora seu conhecimento não possibilite identificar exatamente os componentes presentes. Ao que tudo indicava, era seguro dar à sua irmã.

Claire percebe a hesitação do irmão, então fala em tom baixo.

- Por favor, eu já devia ter tomado ele minutos atrás.

Ela parece debilitada, agora mais do que quando Rian chegou no apartamento. Ela tenta suportar a dor, mais ainda quando recebe as palavras sobre sair dali. No entanto, sua obediência de irmã mais nova prevalece. Seu olhar duvidoso apenas questionava para onde iriam.

O tempo urgia e as coisas não aconteciam como Paradise queria. Sua situação era delicada e o curso de ação tomado poderia significar a diferença entre segurança e Morte Final. Seu senso de perigo, se isso realmente existia, apitava como um alarme de incêndio. Depois de ponderar por instantes, ele resolve optar por algo arriscado, mas inteligente. Os Samedi são conhecidos, pelos menos por aqueles que já ouviram falar de um, por seus corpos decrépitos, como se fossem mortos que ainda insistem em caminhar pela Terra. Mas suas aparências horrendas, além de serem parte de sua maldição infindável, são uma ligação nítida com seu Poder do Sangue. Papa se inspira nessa conexão e, assim como os mortos retornam ao pó, também assim o faz. O frasco de dentro de sua bolsa é usado como recipiente para seu corpo, que se reduz a cinzas através da Tanatose.

Imediatamente, o mundo some à sua volta. O odor fétido, as sombras dos esgotos, o som do chapinhar na água corrente, tudo desaparece em instantes. É uma sensação estranha, como se seu corpo deixasse de existir, restando só a mente no vazio. Era fácil pensar que um Mortal comum podia entrar em choque diante dessa situação. Mas Paradise já havia experimento isso, e comum não era uma palavra que o caracterizava. Ele tenta se concentrar, a fim de não ficar completamente às cegas, pois, apesar de estar naquela forma, não havia garantia de sua segurança. Não é uma tarefa fácil controlar os sentidos sem um corpo, de forma que o Samedi fica apenas vagamente ciente do que acontece ao seu redor. Alguns segundos se passam e ele sente uma presença próximo de si. Depois outra, e outra, e outra, e mais outra. Ele estava cercado. Torcia para que seus perseguidores, seja lá o que eles fossem, não notassem sua existência ali. Por um momento, ele ainda consegue escutar a água corrente sendo remexida por algo grande.

Um minuto se passa. Paradise já começa a pensar no que fazer se ele for descoberto. Seu corpo era imune a muitas coisas, mas não a tudo. Sua mente viaja pelas possibilidades, quando ele sente as presenças se dispersando. Uma a uma elas saem, até que a última, aquela que parecia ser a mais perigosa, também parte. Depois de um tempo, o Samedi acha que está sozinho de novo. Escapara por ora.

Rian sentia-se impotente. Era irônico que a falta de conhecimento o trouxesse esse sentimento. Logo ele que, por muito tempo, usou os punhos para resolver seus problemas, agora percebia que eles de nada serviam. A dura realidade o acerta, fazendo-o perceber também, ao fitar os medicamentos, que apenas uma ajuda externa podia lhe dar a certeza que aquilo não era algo armado. De qualquer maneira, a prioridade no momento era sair dali e proteger sua irmã, levando-a para longe de qualquer ameaça.

Claire balança a cabeça em concordância. Podia ser obediência ao irmão mais velho ou sua condição que não lhe dava forças para retrucar. Logo, eles reúnem tudo que precisam para a partida, sendo a maioria remédios e roupas. Rian empurra a cadeira de rodas até o táxi pedido pelo telefone residencial. A noite avançara, porém Vegas permanecia barulhenta. Esta rua em particular não era tão movimentada, mas ainda viam-se transeuntes e carros de passagem. Claire olha o céu noturno, visivelmente aflita. Parecia estar um pouco aliviada da dor, pelo menos. O Gangrel a deixa e pede para que esperem por ele, enquanto volta para o apartamento. Ele precisava apagar todos os rastros. Não queria que Gutenheimer ou outra pessoa sequer continuasse a se meter na vida deles dois. Sabia das consequências e estava disposto a aturá-las. A vela acesa sobre a mesa da sala escura é a última coisa que ele vê antes de trancar a casa. O registro de gás aberto faria o resto do trabalho.

O fogo purifica, destrói, apaga. Mas seria possível a chama extinguir o passado? Os olhos do Vampiro passam pelas ruas de Las Vegas, enquanto o táxi faz o caminho designado. A cidade do pecado. Quantas histórias ela mantinha em segredo. A sua era mais uma. Porém ele não conseguia parar de pensar nos mistérios que ele já desvendou. Verdades ocultas que deixaram de ser pela sua singela insistência. Se ele, um mero Neófito, conseguira tais façanhas, o que impedia de outros melhores que ele também o fazerem? Seria um jogo de gato e rato, só que agora havia algo mais para tomar conta, mas algo mais pelo qual valia a pena se arriscar. Esses pensamentos fluem como rio e, como se num passe de mágica, lá estavam eles, de frente ao hotel definido. Velho e discreto, como qualquer hotel barato exige. O bairro era periférico, onde ficavam apenas as pessoas que queriam sair de Vegas mas não podiam e aquelas que queriam entrar mas não tinham dinheiro o suficiente. O atendente nem se dá ao trabalho de pedir nomes, apontando para um quadro de valores por quarto com uma nota em vermelho: "Pagamento adiantado". Por sorte, Rian havia pegado dinheiro emprestado mais cedo essa noite. Algo lhe dizia que aqueles dólares nunca iam ser pagos de volta.