Eu tenho algo para você
Página 1 de 1
Eu tenho algo para você
"Mas onde se deve procurar a liberdade é nos sentimentos. Esses é que são a essência viva da alma."
- Goethe
Eu os mantive em cativeiro e como pássaros talhei a ponta de suas asas para que jamais alçassem voo. Eu não sabia, no entanto, que eles eram ainda larvas e se rastejaram, quando me dei conta, já eram borboletas.
Não se vá ainda, essa noite não é sobre mim, eu bem sei. Ouça-me.
Fechei a porta depois de alguns segundos, haviam sempre as sombras que gostavam de atravessar por portas e não por paredes. Parece rudeza fazê-los agir com desagrado. Eramos muitos naquela sala escura. Havia pintado as paredes de preto por puro capricho, não importava que cores eram, eu ouviria as vozes da mesma maneira, até mesmo sentada no meio da praça de alimentação de um shopping, embora não visite esses lugares. Você sim . A janela aberta convida uma leve brisa que balança meus vermelhos cachos, mas não conseguem movê-los, são grossos. Ele me olha nos olhos, os meus tão azuis que poso ouvi-lo questionar se enxergo Sim eu enxergo . Mais do que isso, eu posso sentir em seu âmago a desconfiança sobre os poderes que digo ter. Eu entendo. Você também questiona.
Os ardilosos gastam muito de seu tempo costurando a trama de sua mentiras, eu teço as linhas das informações que me dão e entrego à seus devidos donos. O que fazem com o que recebem, é escolha de cada um. Alguns apenas avaliam o que digo, como se me dessem notas. Outros, se postam a pensar, outros à agir. Que todos estejam à vontade para fazer o que bem entenderem.
Desconfiado. Eu me sento à sua frente, a luz da lua reflete em seu rosto e o meu se esconde na escuridão, não há velas, por motivos óbvios para nós. A fumaça do incenso inebria. Puxo um tecido de veludo e o pouso sobre a mesa, passo as duas mãos sobre o pano e sinto sua maciez. Seus olhos nos meus dedos finos. Tiro um baralho que estava silenciosamente pousado no canto da mesa. Ocultado pela minha escuridão. Não é nenhum truque, apenas falta de atenção. Mas eu sei o que pensou.
Dizem que não possuímos aquilo que não compreendemos.Ele certamente não conhecia os grilhões da vida espiritual. Cá está, tu, esperando tua carta. Puxe-a
Eu segurei o baralho como um grande leque. Viradas para mim. Seus dedos de leve tocam os meus assim que estica os seus. Sinto um choque e solto uma das mãos. Quase todo o baralho permanece unido na outra mão, mas algumas cartas caem viradas para cima. Essas... Essas são as nossas cartas.
A carta caiu em meu colo. Se emaranhou em minhas vestes para ter certeza de que eu iria receber essa mensagem. Quando estou em transe, não sei de onde vem os conselhos. Os pequenos fios que me conectam ao mundo pulsam fortes e a unica coisa que posso fazer é ignorar os estímulos e apenas me agarrar ao que está em minha frente.
Os amantes.
Essa não é para você. Ela simboliza a voz da intuição. Essa a quem fala, a quem tu ouve. O momento de se conectar com seu eu interior. Se não houvesse essa conexão, não estaríamos aqui. Mas ela, meu eu, costuma se perder as vezes. Através de ti ela receberá o recado dela e através dela tu receberás o teu.
Esta é a tua. O diabo está à espreita. Mas não aquele que imaginas. Teu demônio te veste a carne e olha através de teus olhos, assim como o meu demônio. O teu pode ser um advogado ou o primeiro homem em marte. Não importa. É quem tu menos desconfia, pois mora no teu âmago, é tu e nem sabes. Tenha cautela, sua vida é um jogo, mais do que a de qualquer um outro. Se não for vitorioso, vai encontrar a morte eterna e não por conta de nossos irmãos ou inimigos, mas sim pelo total esquecimento. Vai ser descartado como uma folha de papel suja.
Esse conselho te dou de graça. Quando acordar, sentir a sensação de confusão, aquela que dura alguns segundos assim que abre os olhos. Ouça bem, pois é ali que sai do contato dele e vem para esse mundo que conhece e vive. Ouça a ti mesmo e deixe que ele te ouça.
Pelo canto de meu olho pude ver que havia uma outra carta. No escuro, prestes a cair da mesa, se equilibrando. Mesmo no escuro eu senti sua energia. Não era nossa carta. Mas você sabe disso. Para ele o silêncio pairava, mas eu falo à minha maneira, ele não ouve. Sinto formigar o meu ombro e meus pulsos, dores que não são minhas. Estico minhas mãos e puxo a carta com a ponta do dedo indicador, aos poucos a luz da janela ilumina a carta. Vejo a expressão em seu rosto, o medo. É exatamente o que deveria sentir. Não contenho o sorriso que escapa pela lateral de meus lábios, não há graça no desespero a ser seguido, mas sim na compreensão de que é iminente.
A Torre
Há tanto o que dizer sobre essa. Não é sua, é do outro. Aquele que sabe bem o seu lugar, a espera.
Mas te afeta. Pois a torre é a queda inevitável. Não há alicerces para manter o que se construiu. Nossa vida está emaranhada com outros, como por exemplo nesse momento .
Dito isso eu me levanto e seus olhos me acompanham. Eu sinto sua inquietação por não enxergar meu rosto. Não teme, mas intrigado, gostaria de me ler tão bem quanto eu leio as cartas na mesa. Eu seguro A Torre e coloco-a em sua frente. Meus cachos escorregam em seu ombro. Há um aroma de rosas e ervas. Eu me inclino, agora atrás de você. Coloco as mãos sobre seus olhos e em seu ouvido eu falo
Pense nas vezes em que sentiu que estava olhando sua vida de fora. Sinta a quantidade de finos fios que atravessam seu peito, a impressão de cócegas. Imagine-se preso nesse mesmo dia, que ao sair da sala vai entrar novamente por aquela porta e então puxar as mesmas cartas. O que vivemos se emaranha no espaço tempo e nos conecta à outras épocas e lugares. Você já se viu sentado frente à uma tela de computador, mesmo quem não tenha o costume de usar um, mesmo assim seus dedos dançam rápidos. Você já o viu dormindo e sonhando com teus passos. Você já o viu sentado olhando para a lua e pensando em você Quantos outros você já sentiu no peito? Todos fizeram e fazem parte de tua vida. No entanto, este está prestes a descobrir a verdade, consciente de tua consciência e ele vai se jogar no abismo, consequentemente, você vai junto. Você vai junto. Veja
Solto teus olhos, o cheiro das rosas parece se misturar ao cheiro forte da decomposição. Suas duas mãos vão aos ouvidos. Os sons são altos e desconexos. Você está os ouvindo como eu os ouço sempre. Você pode imaginar os sons de mil ambulâncias em uma rave enquanto mil pessoas tentam se comunicar, ao mesmo tempo. Eu sinto teu desespero. Não vai se lembrar do outro lado quando sair do transe, não vai saber dos demônios que fazem morada no peito. E teu grito é inaldível.
Deixe-os ir. São lamurios de outros esquecidos. Agarre-se ao presente. Saia de onde acha que está e volte. Siga minha voz. Eu estou aqui do seu lado. Deixe-o achar que está no comando, pouco importa, só lhe resta viver enquanto pode. Volte. Deixe-o
Na maioria das vezes, alguém se joga pela janela. Hoje em dia eu a deixo aberta para evitar os cacos do vidro. Mas não esse. Retirou as mãos dos ouvidos e se levantou abruptamente. Virou-se para mim com os olhos revirados, branco como a lua. Abriu a boca, mas eu não pude o ouvir. Aqueles que carregavam estavam avidamente se comunicando. Eu dei de ombros, depois sorri. Deu alguns passos para trás e me vi, por um instante, na frente de uma tela nela, escrevendo destinos. Voltei e o vejo atravessar a porta.
Ela fica fechada por um tempo. Alguns segundos ou horas. Batem na porta. Eu abro novamente e fecho-a depois de um momento, para deixar quem estivesse nas sombras, entrar novamente.
Pode ir agora. Ouça-me, essa noite não foi sobre mim.
Eu teço as linhas que são como veias secas na minha carne. Eu transmito a informação que me dão. O que fazes com isso, é de respeito de cada um.
Tópicos semelhantes
» Conflitos na Palestina
» O que você está ouvindo?
» O que está ouvindo?
» E se você fosse um personagem de Storyteller?
» "Nowhere Man" - No que você se meteu, Xerife? (Crônica Oficial)
» O que você está ouvindo?
» O que está ouvindo?
» E se você fosse um personagem de Storyteller?
» "Nowhere Man" - No que você se meteu, Xerife? (Crônica Oficial)
Página 1 de 1
Permissões neste sub-fórum
Não podes responder a tópicos